quinta-feira, 29 de abril de 2010

O AUSENTE

A chuva na janela, mais a falta de sinais seus,
mais o meu descontrole formaram  a soma imperfeita.

E foi assim que me decidi manchete pro jornal de amanhã:
Encontrada morta, nenhum  sinal de violência,
só de ausência.

(Elza Fraga)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

A TRAIÇÃO

Sabia que ali tinha coisa! O cheiro estava no ar, era só respirar, nem precisava ser fundo,  que sentia algo entre o sujo e o fedido.
Fingiu que não percebeu, assobiou, limpou a gaiola do passarinho, pegou o jornal no quintal, colocou na mesa.  Tudo igual, todo o dia igual, rotina!

Tomou seu café, fraco como água de calcinha, não reclamou, se comportou como o cavalheiro que nunca tinha sido.
Esperou ela sair do quarto como fazia sempre, depois era a vez dele.
Banho, troca de roupa e batente, ganhar o pão da vida.

Geralmente quando ele saia ela já tinha entrado no ônibus,
casa da madame, faxina, explicava ela.
Mas dinheiro que era bom, vindo dela, ele nunca tinha visto a cor.
Lugar tão secreto, nem o telefone  nunca deixara para uma emergência.
Ela ia segura, sabia que ele ficava preso em suas arrumações,
tinha horário a cumprir.

Esse dia não. Foi só ela bater a porta e ele sair correndo do banheiro, pegar a câmera.
Afinal ia querer registro.
Saiu pelos fundos, se esgueirando entre varal de roupas, balanço de criança,
carrinho de mão enferrujado.
E lá ia ela no seu andarzinho de passarinha tonta, olhava pros lados como se
desconfiasse de alguma coisa.
E ele,  a sombra, seguia cada passo a distância segura.

Passou o ponto do ônibus, ela prosseguiu.
Passou a igreja,  a pracinha, o centro comercial, as casas foram rareando 
e ela seguindo em frente.
Acabou a rua de asfalto.
Agora era um caminho de terra, orlado de flores miúdas,  muitas árvores,
cheiro bom de verde.
Chegou num riacho, ora bolas, nem ele sabia daquele riachinho gramado
nas laterais. Lugar bom pra se fazer sacanagem!

Mas sacanear logo ele já era demais, pensou.

Agora pego ela e o desgraçado e acabo com a raça dos dois.

Ela calmamente, como se pressentisse público, abriu vagarosamente,
um a um, os botões do vestido. Deixou escorregar pelos ombros.
Desceu as alças do sutiã, rodou o fecho pra frente, soltou e deixou cair,
descuidado no capim. E os mamilos, tão sonegados pra ele,
descaradamente a mostra, endurecidos por pensamentos pervertidos que colocava
um riso de safadeza na cara inteira.
E ele, como um gato na folhagem, quase esquecendo a ira
e atacando aquela carne ali, pertinho,  oferecida.

Escutou passos, se encolheu mais ainda, não poderia estragar tudo agora,
melhor ver, ter certeza.
E teve!

Os dois corpos se encontraram, ela no afã de desvestir o outro corpo,
pressa e sofreguidão.

E ele com os olhos arregalados, estatelado, preso ao chão.
Mistura de susto e riso.  E alívio!

Mas e agora?

Como poderia mostrar  pro irmão as fotos das duas esposas,
a sua e a dele,  se roçando no capim?

(Elza Fraga)

A CHAVE DA MENTE

Ele pensou, pensou, pensou até conseguir desconectar dentro da
cabeça alguma peça importante.
Pronto, conseguira desligar as palavras, marteladores de cérebros.

O mal e o bem que habitavam juntos anteriormente, numa boa,
mudaram de endereço.
Ele nem sabia pra onde. Aliás, ele não sabia mais de nada.
Não sabia se existiam nomes, endereços telefones.

Daqui pra frente só novidades, mas, esperto, ele escaparia delas,
não cairia em armadilhas.

E foi tão fácil, foi só atarraxar aquele sorriso bobo na cara assim que
desalojou, pra sempre as palavras.
Este era o segredo, a fechadura da mente.
Nada de chave, nada de cadeado, nunca mais que se abriria.

Sem, rumo, sem prumo, sem dores, só cores e cheiros.

Pena que se esqueceu de anotar a fórmula antes do final do processo,
me condenando a ficar com este zumbido duplo de pensamentos
desencontrados,
sem nunca saber ao certo quando são os meus,

quando são os dele.

(Elza Fraga)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

PORTARIA DE VIDA


Retrato do Dr. Gachet, de Van Gogh


Achou que Deus estava querendo brincar com ele.
Achou não, teve certeza quando ela olhou por cima do ombro,
arriscando um torcicolo, só pra dar uma piscadela.
Pronto. Fechou com chave de ouro.
Este dia era dele.
Não andou mais, correu, pulou, saltou danças imaginárias,
inventou passos coreografados.

Já fazia tanto tempo que ele secava aquela morena e ela nem aí.
Nem um sorriso, um oi de má vontade, uma olhadinha pequena que fosse.
Só a soberba, a pose, o desdém.
A segurança de se saber mais que ele em tudo.

Mulher formada, não sabia bem em que, mas formada em faculdade!

E ele, que mal rabiscava o nome, estava levando pra portaria,
onde sonhava mais que trabalhava, uma piscadela de olho,
e da morena formada!
Este formada era muito importante pra ele, mais que pra ela, talvez.
Resolveu se dar ao luxo de um cafezinho no bar da esquina,
pertinho do trabalho, nem ia se atrasar.

Entrou com pose de macho satisfeito com a vida.
" Bota aí um café, e hoje quero com adoçante, falô?"
Nem pensar mais em engordar, sua cabeça já fazia planos
de exercícios, ginástica, academia!

Foi quando escutou a conversa de duas moradoras do prédio,
bem atrás dele:

-Será que ela pagou a aposta que perdeu da gente?

E a outra
-Claro, a esta altura o idiota do Zé já deve ter levado sua piscadela
pra sonhar na portaria.

A primeira, mais maldosa:
- Pro banheiro, querida, pro banheiro!


(Elza Fraga)

sábado, 24 de abril de 2010

A TROCA

Era a milésima tentativa, agora a carta tinha que sair, de um jeito ou de outro.
Querida.
Não, melhor tirar o querida.
Amiga.
Também não. Ficaria impessoal e vago, ele transava com ela toda
terça já fazia tanto tempo que poderia parecer zombaria.
Quem sabe começar direto e ir logo ao ponto?
Respirou, tomou coragem e rabiscou com aquela sua letra miúda e torta:

"Terça feira que vem não precisa vir. Troquei o miolo da fechadura e
entreguei a nova chave a sua irmã. Não é nada com você, é comigo,
Sou um canalha, nem mereço perdão.
Você vai encontrar quem mereça alguém assim, tão devotada”

Sabia que era chavão, sabia que era mentira e sabia que ela também sabia.
Mas se livrara da árdua tarefa.

Nunca imaginara ser tão difícil dar um pé no traseiro de alguém

Mas fazer o que se a irmã tinha a bundinha mais dura que ele já vira
em toda a sua vida?

Não era homem de desperdícios!

A CARRANCUDA DO TERCEIRO ANDAR

Acordou do avesso, dava pra se ver de longe pela cara amassada.
Perdeu a hora, perdeu o ônibus, perdeu o café da manhã farto
servido  pela morena, empregada da carrancuda  do terceiro andar.
Ah, se um dia a velhota sonhasse o que a empregada lhe oferecia por entre
bolos e biscoitos.
Aqueles seios fartos debruçados no balcão, quase saltando fora do decote,
fazia seu dia suportável.

Mas logo naquele dia a megera esquecera de acertar o despertador.
E aí dele se cobrasse alguma coisa, era um desparrame de lágrimas,
de eu não sirvo pra nada, sou uma inútil nesta casa, pra você era melhor
eu já ter morrido...
Desta ultima parte ele gostava e começava a imaginar a víbora dura,
no caixão, e ele fazendo as honras da casa, servindo cafezinho.

Claro que com a ajuda da empregada da carrancuda do terceiro andar!

Sonhar com este dia fazia que as horas passassem mais depressa.

Num repente o sonho ficou amargo, uma sensação de náusea, uma dor
esquisita no ombro. Nem deu tempo de dar um ai. Caiu ali mesmo.

A noitinha, lá estava a megera,  fungando em cima do caixão que não
era pra ele, servindo o cafezinho que era pra ele servir,

com a ajuda da empregada da carrancuda do terceiro andar.

LUA CHEIA

Abriu a porta pra lua, deixou que ela se refletisse por inteira na parede mal caiada,
sentou-se a mesa, a solidão doendo como faca enfiada e girada dentro do peito.
Era a única companhia de todas estas noites.
Pena que tão calada, só escutava suas queixas.

Puxou os dois pratos, um pedaço de pão dentro de cada.
Deixou que a lua  se servisse primeiro e ela ali, só olhando, muda.
Pensou lá com seus botões que a lua estava sem fome esta noite.

E foi só então que ele percebeu o tamanho da sua distração,
era lua cheia!

(Elza Fraga) 

O ASSALTADO

Andava torto, encurvado, sentia o morto que estava querendo saltar boca a fora, o gosto de sangue e vômito, a lucidez cada vez mais longe, as idéias cada vez mais embaralhando e pesando, empurrando a cabeça pra mais perto do chão.
Nem sabia de onde havia partido o primeiro soco, nem sabia porque logo ele escolhido entre tantos outros. Agora não tinha mais tempo pra se preocupar com isso.  Precisava de ajuda. Alguém pra segurar sua alma no colo e embalar cantando as antigas cantigas da mãe que se fora quando ele ainda precisava tanto.

E aí, longe, veio se aproximando o primeiro acorde:
-Dorme criança que a dor não alcança quem o sono acalanta.
Mais alto um pouquinho:
-Dorme criança que a dor não alcança quem o sono acalanta.

Agora cada vez mais perto, cada vez mais perto,
até que a viu, abriu os braços e caiu.

Dormiu enquanto a canção continuava, pro resto da eternidade,

enfim a paz.

(Elza Fraga)

terça-feira, 20 de abril de 2010

A NOITE EM QUE O MEDO EMIGROU

(Prosa poética)

Ofendia, humilhava, dava só o que sobrava
e porrada
e ela vivia dia a dia dos sobejos.
Até que a ousadia a rebelara, se ajoelhou pediu um beijo
um simples beijo

o chute veio insuspeitado pegou no queixo
dor e estrago
inaugurado, sem pompa e gala, novo defeito na cara
já tão marcada, tão amansada no medo

e num levante inesperado de tanta vida esgarçada,
desgraçada, esfiapada, vê a garrafa [cheia].
Bate num rítmo ligeiro bóim bóim bóim bóim
até arrebentar a veia e o sangue inundar o olho surpreso

até acabar a dor da raiva da rejeição de todo o dano do desengano
de tanto ano que ficou pra sempre perdido no tempo
até acabar todo o ar que preenchera aquele pulmão
desumano

agora o vento
levara o medo

E lavara as mãos.

(Elza Fraga)

sábado, 17 de abril de 2010

CONFERIDA


Vai lá se saber o que ela queria, morava no meio daquela calçada
fazia décadas, não sabíamos como e quando chegara,
já fazia parte da paisagem.
Resmungava o dia todo. Uma ou outra coisa a gente até entendia,
mas a maioria era uma ruminação de palavras feias.
Se a gente olhava ela corria brandindo um porrete que mais
parecia a extensão da sua mão.
Se a gente passava de cabeça baixa ela xingava mais alto, pra provocar.
Berrava até a gente sumir na poeira.

Até o dia em que passamos, em bando, e lá estava, sentada, calada,
sem o porrete, sem mais nada sobre si a não ser a pele que Deus lhe deu.
Ainda comentamos:
"A doidinha  enloucou de vez"!

Olhava pro céu como se desvendasse o milagre da vida.

Bem no final da tardinha voltamos pra conferir,
nesta curiosidade indecente de seres humanos,
e lá estava, dura como o porrete que lhe acompanhou
boa parte da vida.

E conferimos:

Ela desvendara o milagre da morte


(Elza Fraga)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

VIDA QUE SEGUE

 .
Seguiu o cortejo, lembrou da conta atrasada e com esse truque conseguiu umas lágrimas cara a baixo.
Parou bem na boca do buraco, olhou pra dentro, escuro;
a tarde já vinha caindo nas poucas cabeças ali amontoadas.
Cada uma chorando seus motivos próprios.
Um quase meio sorriso ia se abrindo, se conteve.
Precisava aprender a controlar os pensamentos felizes.
Pensou na mãe, morta tão nova, sofreu mais que burro de carga!
Enquanto divagava procurando uma cara mais condizente com o ato  perdeu o principal.
Quando se deu conta já estavam lacrando com uma placa de cimento a última morada do canalha...
Acabou, agora era só passar no advogado pra saber o que lhe restara deste defuntoso,
meter a mão no seguro, na pensão e ir sustentar direito o coitadinho do Amarildo,
que este, coitado, sempre viveu dos restos que ela conseguia surrupiar.
Avisar que acabaram-se as migalhas!

Este sim, valia a vida!

(Elza Fraga)




O ANUÁRIO

.


"Tira a roupa, agora!"
Ela tirou.
"Deita na cama e me espera quietinha, já volto."

Era primavera, sentia até o cheiro das flores.
Um calor insuportável se fez, será que chegara o verão? Até que era bom estar nua. Mas veio , mansinho, o outono. ela escutou o zuuuuuuum do vento lá fora, jogando as folhas ao chão, passou um arrepio gostoso pelo corpo.
E aí começou a entrar um frio, de principio medroso, mas a vendo inerte, deitada sem proteção, ficou corajoso, começou a soprar cada vez mais forte seu bafo gélido. Este ano vai ter geada, pensou ela. Depois disso a única coisa que lhe passou pela cabeça foi um pensamento vago e esfumaçado de como seria a cara dele se voltasse agora.
e aí fechou os olhos e, finalmente, dormiu.

(Elza Fraga)

JOGO QUE SE JOGA SÓ

 Os Miseráveis -Victor Hugo
.
Éramos tres: Eu, ela e o cigarro embolando a fumaça no ar, formando figuras.

Num repente viramos dois, ela cansou de olhar o vazio tentando adivinhar
que desenho novo a fumaça desenhara, acordei com a ausência. Acendi
um cigarro. A brincadeira perdera o gosto. Virou jogo que se joga só.

Deitei o cigarro ao chão, pisei até a brasa apagar o meu pé nu. Virei um.

(Elza Fraga)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

DÚVIDAS

Imagem do acervo da poeta Liria Porto


Mão no queixo. Sentada olhando a tela do computador sem ver.
Pensamento em casa, enquanto o trabalho a reclamava e ela
nem aí, matutava, matutava...
O que andaria ele fazendo neste dia de folga sem ela pra vigiar
seus passos?

A resposta, num flash, estourou dentro da sua cabeça:
Comendo a empregada.

Levantou num ânimo de morrer ou matar e lentamente
fez o caminho pra casa.

(Elza Fraga)