quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

ERA UMA VEZ...

Da série histórias adaptadas a realidade atual.
...

Era uma vez uma princesa encantada que vivia a beijar os sapos do brejo.
Não escolhia, achava, era sapo, tascava um beijo e esperava, esperava...
Como sapos são sapos e sempre serão, e esta história de virar principe é mentira
das histórias da infância, ela ficou marcando passo e perdendo tempo à toa.

Até que um dia se aborreceu, caiu a ficha, pegou um sapo e levou pra casa.
Guardou bem guardadinho na banheira e reservou.
Desceu as escadarias do palácio, essa história é do tempo que palácios existiam,
foi pra saleta de costura, pegou uma linha vermelha - cor da paixão, uma agulha bem grossa, uma tirinha de papel, um lápis, sentou a mesa, escreveu o nome do lacaio mais bonito do rei, seu pai. Subiu as escadarias novamente. Aí a coitada já estava arfante! Era uma princesa desacostumada de exercícios físicos. Não fazia nem Pilates.

Pegou o sapo pelos colarinhos, era um sapo de vestimenta nobre, um verdadeiro cavalheiro nos trajes, abriu a boca do bicho, jogou a tirinha de papel com o nome do escolhido dentro da goela do pobre. E, sem dó e nem piedade, costurou a boca do sapo para que ele não contasse o seu segredo e nem mostrasse a tirinha pra ninguém.
Toda a corte daqui destas bandas sabe o quanto os sapos são fofoqueiros e falastrões.
Saiu, pé ante pé, sem fazer barulho, e jogou o sapo no brejo novamente. Virou e nem olhou pra tras. Retornou ao palácio e a sua vidinha triste de princesa sem namorado.

Agora ela possuia uma esperança. Quem sabe o feitiço, passado de rainha a princesa por longos séculos, não funcionasse?

Quem sabe o lacaio, formoso, ombros largos, apetitoso aos olhos de todas as moças casadouras do reino, não se apaixonasse por ela?

Não era nenhum principe, verdade, mas pra quem estava quase que fadada a casar com um sapo, qualquer melhora era lucro grande.

Parece que depois disso a coitada ensandeceu de vez.

Uns dizem que foi rebaixada de princesa a bruxa oficial do reino, perdeu os dentes, ganhou verrugas e uma vassoura última geração, com um motor de fazer inveja a fórmula um.

Outros dizem que, como o lacaio não se mancou e continuou ignorando solenemente a coitada, a mesma mandou que lhe decepassem a cabeça sem anestesia nem nada.

Há ainda uma corrente que diz que a pobre ficou solteirona e começou a se meter na vida de todo o mundo ao redor. Falava da vida alheia que era uma beleza. Cascudava sobrinhos, implicava com todos os sapos do reino, e vivia a vociferar contra tudo e todos.

Mas a verdade, a verdade mesmo, verdadeira, é que ela desistiu de ser princesa, fugiu do reino encantado, veio morar em Copacabana e, todas as noites é vista no calçadão com a sua bolsinha amarela e sua mini saia, e escolhe o principe que bem entender pra lhe contar histórias pela noite a dentro.

Depois que mudou de vida descobriu que a gente pode ser feliz pra sempre, é só mudar o rumo da história.

E quem quizer que conte outra...

(Elza Fraga)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

DESEMBARQUE

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Eram jovens, uma vida inteira pela frente a ser descoberta, aproveitada, sorvida, pensava ele ávido de coisas diferentes.
Uma vida inteira pela frente para caber todos os sonhos que acalentava no peito, para ser feliz finalmente, pensava ela ávida dele e do desfrute das promessas.
"Que bela noite", dizia ela, "quantas estrelas piscando no céu."
"Vieram só para enfeitar a sua noite", respondia ele...
"Está vendo aquela grandona, a mais brilhante?... A noite a teceu só para iluminar os seus cabelos... E a pequenininha, escondida entre as nuvens, está apenas escondendo os nossos beijos dos olhares curiosos."
Mas o tempo não para a escutar tolas conversas, ele galopa qual cavalo livre em prados abertos... Com eles não foi diferente. Veio o ajuntamento, a descoberta, o desfrute, a monotonia, o enfado e, finalmente, o entojo... Afe!... que não havia um dia sem briga e nem uma noite sem dor de cabeça, desculpa universal de todas as mulheres quando o amor claudica...
Eram maduros, sonhos opostos e insatisfeitos, filhos criados e voando vidas próprias...
"Que bela noite" - disse ela - talvez cabeça num passado longe, lembranças vagas de um tempo enterrado ou esquecido. "Quantas estrelas piscando no céu para enfeitar algum amor que, porventura, ainda insista em acreditar na felicidade."
"Deixa de ser burra, sua tola", ele responde, "acaso não aprendeu, com toda esta idade, que estrelas são apenas corpos celestes formados de plasma, o quarto estado da matéria, e não de gás, como muitos pensam, e que se mantém coeso devido sua força gravitacional?"

E foi aí, nesta noite de céu estrelado, que ela desistiu de vez de tudo e desceu do bonde da vida...


(Elza Fraga)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O DIA EM QUE A HISTÓRIA MORREU










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Se lhe perguntassem o ofício não tinha dúvidas, contava histórias e ponto. E por encomenda.
Queriam histórias de bichos, de fadas, de bruxas malvadas,de saci pulando na floresta, de estrelas fazendo tiaras de luz e enfeitando cabelos de princesas, de principes beijadores, de sapos encantados? Era só pedir!
Queriam modernismo, carros, homens cheirando a lavanda, mulheres abusadas que fugiam de casa pra ganhar seu sustento vendendo o que tinham, bandidos que roubavam corações de meninas donzelas ou nem tanto, pancadaria, sangue? Também era só pedir.
Estava nesta vida desde que se conhecia por gente. Começou, lá quando era um palmo de gente, inventando lendas para escapar dos cascudos e beliscões de Cotinha, que afiados assim pra doer danado nunca ninguém vira antes!
E se encorpou, se perdeu na vida com um mancebo bonito de olhos de lua que nem era daquelas bandas. Ele se foi. Seguiu no encalço como quem espreita onça nos riachos bebedouros. Achou, grudou, embarrigou, teve seus meninos, que não era boba de parir fêmea pra viver solta na vida.
Entre uma parida e outra sentava na soleira e esperava. Logo aparecia um, outro, mais outro, e ela calada, pitando e cismando, preparando na sua cabeça de enredos o repertório da tarde. E quando achava que a platéia já estava no exato tamanho do seu merecimento, despejava falação em cima do povo.
Puxava, lá dum tempo perdido, as histórias que escutara de Cotinha. Nunca iguais. A cada contada um detalhezinho novo, um tempero ardido, um molho acolá...
Depois entrava nas que, sua própria cabeça de nuvens, inventava.
E era aí que a sessão começava mesmo. Se transformava. Era a artista no palco maior e mais iluminado, sorria, gargalhava, fungava, chorava e interpretava cada personagem como se disso dependesse a sua reputação.
Num dia meio chuvoso, acordou lenta, olhou pra rede bem do seu lado esquerdo, vazia, sem função. Olhou as tralhas, conferiu o faltoso. Uma
caneca, uma muda de calça, um par de chinelos gasto, a viola e os olhos de lua. Contou as crias, essas ficaram todas espalhadas pelo quintal numa algazarra de quem não entende.
Ela entendeu. Fechou pra sempre a porta por onde entravam as histórias, trancou a mente, jogou a chave fora. Sentou na soleira, silenciosa, olhar estranho, perscrutando perdido lá pelas bandas do
fim do mundo.
O povo ainda insistiu por um bom tempo, ficava lá esperando, não sabia bem o que. Até que cansou de tentar entender porque raios a louca das histórias emudeceu assim, de uma hora pra outra, de vez,
e ficou só aquele olhar vago olhando sem ver!

(Elza Fraga)

A TRAIÇÃO DO ESPELHO







Hoje dei de cara com o espelho da sala de jantar. Não foi de caso pensado, nem de propósito. Não olhei com o olho de ver. Olhei com o olho do sem querer...
Foi bem assim, vinha flanando, procurando algo que nem sabia o que, numa insatisfação doída e doida, num repente de querer mãos e cabeça ocupadas. Quiçá um livro destes bem comportadinhos, com letrinhas mágicas e perfeitas, todas redondas, facinho de ler, facinho de compreender, pois não estava em dia de grande acuidade mental, estava mais pra lerda, uma leseira de cabeça, uma vontade de achar tudo mastigadinho...
Um jornal aberto olhou pra mim, pedinte que só. Ignorei e foi este o erro fatal,
Ao levantar a vista pra fugir das manchetes, dei de cara com o espelho, enorme, assustador, de bordas negras feitas em madeira pintada.
Levei um susto que me arregalou a cara toda, até o olho!
Aquela ali dentro do espelho, presa pela surpresa da descoberta, não era eu...
Bem, pelo menos não era a “eu” que conhecia. A eu de face perfeita e semblante fino, linhas retas e clássicas, um toque de exotismo pra confundir com beleza... Não, aquela era uma mulher gasta. A boca sem sorriso, o olho sem brilho, as faces chupadas formando vincos... Uma caricatura mal feita e mal acabada do que fui um dia. Ainda ontem eu era a ninfa. Quando foi que me transformei neste simulacro de mulher?
Talvez eu tenha parado no tempo, mas o espelho, este covarde a quem dei abrigo em parede de honra, frente a mesa de jantar, num ato de traição explícita, continuou a contar o tempo... E hoje me sabendo tremendamente despreparada para novidades ruins, resolveu me dar de troco, a medida do real...
Gente, que terra é esta em que não se pode confiar mais nem no nosso próprio espelho?!

(Elza Fraga)