segunda-feira, 24 de agosto de 2009

RUMO AO SOL

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Ela nascera com aquela função, pra ela fora preparada.
Todas as mulheres que a antecederam na família, vieram
com a mesma :
Essência e carne de dona de casa.
Profissão? Do lar!
Naquele dia, nunca soube porque, acordou de um jeito virado,
do avesso, parecia outra.
Estava esquisita, quente como febre, uma zonzeira na cabeça,
um olhar de ver tudo nublado e escurecido...
Olhou a cama por fazer, deu as costas.
Abriu a porta do banheiro, escovou os dentes mecanicamente,
tomou uma chuveirada pra tentar voltar a normalidade,
seu próprio resgate.
Mas qual... nada! Parecia que nascera dentro dela, durante a noite, algum ser estranho e ocupara o lugar que nem era seu, posto que nem sabia mais quem era.
Saiu pelos corredores a abrir portas vazias de vida.
Achou uma que escondia estranhos adormecidos,
um homem entre duas crianças morenas...
Se ela nem sabia quem era, como poderia saber que trio era aquele?...
Deu de ombros, como se sacudisse de si qualquer envolvimento e,
vagarosamente, cerrou a porta.
Desceu as escadas e caiu numa cozinha branca, asséptica.
Alguma coisa dentro dela lembrou, vagamente, de feituras
de café, cheiro bom de pão na chapa... Desistiu.
Olhou pela tela da janela um sol nascente avermelhando o leste.
Saiu, seguiu em direção ao sol, sentia sede de luz, garganta
seca e ardida.
Os pés descalços nem lhe doíam, doía era a alma, insatisfeita
moradora de um corpo errado.
Não tinha noção de culpa, de certo, errado, permitido, negado...
Só tinha uma certeza: Queria chegar ao sol de qualquer maneira,
antes dele se esconder e adormecer...
E assim, caminhando e subindo, lá ia atrás da luz para clarear
a sua insipidez.
Enquanto isso, numa casa de subúrbio, um homem e duas crianças
acordavam mudos de susto e medo de terem que se bastar de vez.

(Elza Fraga)

O EXÍLIO DA LOUCURA...

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Estou aqui vivendo neste mundo chamado futuro, cheio de esperança, onde brilha sol durante todo o ano e não existe uma linha limite entre as estações: É sempre primavera. Sol e flores, brisa e cheiros, cio e gozo, riso e canto... Uma terra que só eu conheço, só eu enxergo, só eu habito, só eu sinto as suas montanhas, mares, florestas... Danço todos os dias, o dia todo, com raios de sol, parceiros, por entre jardins encantados de cores. Sinto um pouco a falta da chuva, não nego... Penso em como ficaria linda, molhada, cabelos escorrentes pelos ombros, pingando gotas transparentes de luz. Durmo só pra sonhar com água caindo do céu em cima do meu corpo quente. E, num surpreso estranhamento, sempre acordo com saudades do não vivido! Também sinto falta de quem me dê ordens, coordenadas, brigue comigo pelas madrugadas, me sacuda, me balance, depois me puxe, me beije, me arraste pelas calçadas, me ame pelas beiradas de ruas escuras... Mas com isso nem ouso sonhar, é expressamente proibido pelas regras... Do outro lado da porta que divide os mundos existem os que lêem a alma!
Estou num  lugar entre o fim do mundo e a terra do Nada, mas tão atrasado, tão atrasado, que, nele, ainda nem inventaram o amor, o sofrimento e a morte. Acho que é o paraíso, apesar das grades e dos cadeados que me impedem de voltar pro lugar comum, com gosto de sangue, de onde vim originada. A mudança foi definitiva, uma espécie de exílio, mas se fecho os olhos ainda posso ouvir as últimas palavras escutadas, cada vez mais longe, cada vez mais fracas: Vai, atravessa a porta, é pro seu bem... é pro seu bem... é pro seu bem...
...
Seria até verdade, não fosse esta maldita solidão...
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(Elza Fraga)