sábado, 22 de maio de 2010

TARDE DEMAIS

Ela passara a vida a mudar de dono, escrava vendida por tostões de vida.
Primeiro o pai, chicote sempre a mostra e proibições a vista.
Numa infeliz e inútil tentativa de alforria veio o marido.
E o que lhe parecera cor de rosa rapidinho virou cinzas.
Só sobrou a lembrança do bolo e da festa, depois foram noites insones de medo.
Imprevisível este novo dono, ela nunca conseguira adivinhar antes
pra pular fora dos bofetes que cada vez ficavam mais frequentes e duros.
Aprendeu rapidinho a receita da liberdade:
Vidro moído na cervejinha do final de tarde, todos os dias, religiosamente.
Um dia o pobre cuspiu sangue, levaram pro hospital, mas o mal já estava feito
e sacramentado.

Ela se imaginou agora livre para todo o sempre, amém!

Mas esquecera apenas um detalhe, o canalha havia deixado um canalhinha
que ele próprio adubara nas longas tardes de ensinamento.
E o que era projeto virou homem, mais parecido com o falecente impossível.


Nunca mais que ela teve pé na estrada. Desistiu.
Só balançava a cabeça em sinal de aceitação pra este último
e derradeiro dono.
Desaprendeu o não, desaprendeu a luta, desaprendeu a luz.

Cansou de lutar contra as correntes e se deixou ali no escuro, parada,
morta em vida.

E se deu conta que aprendera tarde demais a obediência.

(Elza Fraga)

ESTRANHAS COMPANHIAS

Cada vez que ele partia ela perdia o olho lá longe, onde a estrada encontrava o céu, mas ele sempre voltava, cheio de histórias de mundos distantes,  de palavras que ela nunca tinha ouvido, cheiros estranhos
Na última vez ela ainda pediu pra ele ficar, alguma coisa dentro do peito dela tocou um sino diferente de aviso, ele não deu ouvidos.
Nem a ela e nem ao sino
E quando ela olhava pro infinito, bem mesmo no encontro da estrada com o céu, ele sumiu
pra sempre
E ela nem sabe quanto tempo faz que o olho na estrada e o toque do sino não a largam mais.

(Elza Fraga)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

NOSTALGIA


Hoje, quando passava perto da barraca de frutas na feira, escutei o grito do feirante:
-Tangerina, tangerina, olha as mais doces, as mais deliciosas e cheirosas tangerinas.
Engraçado, ou perdi a capacidade cheiratória ou o fulano estava querendo me vender gato por lebre.

Lembrei do cheiro de tangerina que invadia os narizes da minha infância, era quase impossível não roubá-las do cesto e ir comê-las escondidas atrás do muro, nos fundos
da casa, esconderijo secreto que a mãe ainda não havia descoberto.
Ela só sentia a rapidez com que o cesto mostrava o fundo.
Fazia uma careta engraçada de ponto de interrogação, enquanto a molecada fazia cara de paisagem.
Aliás, tangerina nada, era mexerica!
Assim a chamávamos, não sei se  este era [ou é] o nome certo da fruta
ou se éramos por demais íntimos dela.

E isso me trouxe uma nostalgia resgatada lá dos idos e passados tão remotos
que já os considerava perdidos no id, que é pra onde eu jogo sempre o que
não quero lembrar mais é nunca!

E me deu uma gana, uma vontade quase incontrolável de voltar à feira toda,
pegar a faca do vendedor de melancias bem ao ladinho das tangerinas,
e picotar aquele homenzinho gritador que oferecia o que não podia vender
por pura falta de estoque:
O cheiro bom da minha infância.

(Elza Fraga)

segunda-feira, 10 de maio de 2010

ESCATOLOGIA FEMINISTA



Segurou a porta do elevador, deixou a moça entrar primeiro por dois motivos, parecer gentil e olhar a bundinha desta nova vizinha.
Nossa! Não era bundinha.
Era uma senhora protuberância daquelas de fazer a baba escorrer queixo abaixo e santo se desfazer da  auréola.

-Oi, seja bem-vinda. Nova por aqui?

E a boa filha de uma mãe  nem um sorriso pequeno, de resposta.
Ou sequer agradeceu a segurada da porta.
Cara fechada, em cima do salto, só na pose.
Por um momento ele se sentiu um idiota.

Sorriu amarelo pra pedante e imaginou, só  de raiva, ela sentada na privada,  prisão de ventre comendo as tripas e ela ali, só nos puns, cara vermelha do esforço inútil, quase explodindo veias e vísceras parede do banheiro a fora.

Só de pensar desatou numa risada de escorrer lágrimas nos olhos, quanto mais tentava parar de rir, mais ria.
Tentou pensamentos de velórios, de batida de carro, avião caindo com amigo dentro. Nada!  Estava com riso frouxo, risada descontrolada.

E aí olhou pra ela com lágrimas correndo cara a fora, e viu, surpreso,  ela rindo também, pra ele!

Quando desceram no térreo ela colocou ligeirinho, na sua mão, cartão com nome e telefone, deu um apertão e sumiu no saguão.

Ele aprendeu nesse dia uma lição que valeria pro resto da vida:
Mulher não foi feita pra sutilezas e salamaleques.
Gostam de ver, no olhar da gente,  o pensamento nojento e impuro
escapando das órbitas e caindo diretamente sobre elas, o escatológico.

São todas umas bizarras.


(Elza Fraga)

terça-feira, 4 de maio de 2010

CARTA CONFESSIONAL PRA NUNCA SER REMETIDA

Cansei!... Fui até a esquina, me procura por lá!
Dei queixa ao bispo, ‘sartei’ de banda!
Não acredito em mais uma, umazinha, promessa das pequenas.
Você mente em tom maior.
Melhor, 
você mente sementes que germinam em mim,
me fazem fértil.
Virei árvore, parada, grande, frondosa, se deite aqui na minha
rama, arme a rede, se deleite; mas não deite mais esta falação
de doido pra cima da minha alma.
Ela nem agüenta mais e clama:
Calma, vai devagar cantar em outra freguesia.

Que mania infeliz é esta de me tirar de idiota confessa
quando eu sou apenas poeta!

(Elza Fraga)