domingo, 30 de agosto de 2015

EM BUSCA DE MIM




Ingenuamente lhe dei quase todos os meus sentimentos, os mais nobres...
Os de pouca valia escondi debaixo dos pés de frutas do pomar que a minha alma gosta de cultivar.
Dei-lhe os gnomos do jardim, os sapos e os príncipes das minhas histórias malucas, sempre do avesso e na contramão da vida.
Deixei que pegasse minhas fadas e suas varinhas mágicas, minhas poções e feitiçarias, minhas manias de mexer os caldeirões.
Fiquei com minha vontade de com apenas um 'plim' fazer florir, outra vez, e mais outra, todos os recantos que me sonegou, que isso o tempo se encarregou de não me deixar abrir mão ou esquecer.
E agora que fiquei vazia sobrou só a pergunta
Onde encontro você para me devolver a mim?

[elza fraga]

sábado, 8 de agosto de 2015

OS SETE MALES DA TERRA





(Da série histórias para endoidecer o mundo)
Era uma vez...
Um lugar cheio de luz e vida onde todos eram bichos, até o homem era considerado assim.
Havia paz, pleno entendimento, amor entre as criaturas de todos os feitios, cores e dons
Os outros animais, assim como o animal homem, falavam o mesmo idioma, a linguagem universal do amor.
Não existiam doenças, se morria de idade, conforme os planos do Criador, e a velhice não causava medo, pois não tirava o poder e a força da atividade. 
A morte era consequência da vida e era sempre bem-vinda, sem dores, sem traumas ou pavor. 
Ninguém governava ninguém. Cada um cuidava do seu pedaço e da sua função, e todos tinham os mesmos direitos e deveres. 
Nada era comprado, tudo era negociado. Quem plantava o milho e fazia o pão o fornecia aos que plantavam verduras, e recebiam produtos da horta como pagamento. 
As roupas eram tecidas por quem plantava o linho, que as trocava por pão, verduras e o que mais precisasse.
Parecia perfeito, mas... toda a história tem um mas...
Um dia as cobras se retiraram para os campos, fora do alcance da visão dos que por lá moravam, fizeram uma reunião e a chamaram de Congresso, primeiro mal da história desse mundo.
Fazia muito tempo que elas andavam estranhas, até seu rastejar andava mais ligeiro que de costume, então era normal que todos ficassem curiosos. 
E aí foi inventado o segundo mal da terra, a curiosidade que teve como filhas a maledicência e a mentira.
Quando as cobras voltaram do tal Congresso foram a todos os cantos conclamando uma reunião urgente. Como a curiosidade já havia se instalado no meio de todos foi fácil marcar o encontro.
No dia e hora acertado, bem cedinho, lá estavam todos, calados e atentos.
A cobra mais velha, se sentindo a mais sábia, tomou a palavra e num comunicado, cheio de malícia e persuasão, convenceu a todos que precisavam de um sistema que coordenasse, daí pra frente, aquela comunidade. As coisas estavam correndo muito lentas, disse ela, estavam visando o progresso e gostariam de formar uma comissão onde cada segmento teria um cargo. E fez-se o terceiro invento, a votação.
A cobra ficou como administradora de toda a produção. Afinal a ideia fora dela, merecia o cargo mais alto. A raposa como guardiã dos armazéns que seriam construídos para estocar o que fosse fabricado. O cachorro pegou o cargo de tesoureiro. 
A cada bicho foi sendo delegado um posto conforme suas aptidões.
O homem, bem, a este sobrou a função de inventar um papel que serviria de garantia para se adquirir os bens necessários à sobrevivência. 
E aí foi inventado o quarto mal, o dinheiro, pai da cobiça e da avareza.
Só que a cobra não contou toda a pauta do congresso feito só pela sua classe, nem contou que, ao se afastar com seus iguais e decidir por todos trazendo já a pauta encerrada, havia inventado o quinto mal, as classes conforme suas características. Com isso grupos diversos foram se aglutinando em castas.
Também não contou seu plano secreto, que logo foi posto em ação: 
Por qualquer motivo substituía um dos eleitos a posto de comando por alguma cobrinha, alegando curriculum melhor.
E assim foi sendo feito, à sorrelfa, vagarosamente, até que só havia cobras nos cargos que decidiam o destino desse mundinho antigo, lá do princípio do mundo, onde a memória nem mais alcança.
Com tudo dominado chegou a parte mais dura da vida para os que lá viviam. 
Não havia mais consenso e o bom senso mandava que todos obedecessem calados. 
O cão aprendeu uma linguagem nova para tentar se defender e começou a latir, não ensinou ao homem, nem a mais nenhum bicho, seu novo idioma, para que nunca soubessem o que diziam.
Todos os outros bichos seguiram seu exemplo.
As cobras começaram a sibilar pelos cantos, mas ninguém mais queria saber o que diziam nos seus sibilados. Tinham medo da resposta.
E viram o quanto foram tolos. Cansados, deixaram de produzir para os armazéns e inventaram o sexto mal, a preguiça, que pariu o ócio e a miséria.
Tarde para retroceder, tarde para combater as cobras que se multiplicaram como loucas que eram, tarde para tentar salvar um pouco do passado de paz, abundâcia e bonança.
Começaram a notar sinais de fraqueza, doenças surgiram ninguém sabia de onde, e levava, sem escolher, todo o tipo de povo para as terras do lado de lá do véu. 
A morte já não era natural e doce, era castigo e doía no corpo e na alma.
E se deram conta do sétimo mal inventado, a inveja, pois quem sobrevivia mais um pouco acabava invejando os que já tinham saído dessa roda doida chamada vida. 
E a inveja, o mal mais perigoso de todos, teve como filhos o ódio, o deboche e a ganância.
Virou uma terra de inimizades onde nunca mais os seres falaram a mesma língua. Hoje, nessa terra, mesmo os que comungam do mesmo idioma se desentendem ou entendem errado até as palavras mais doces de amor e paz, pensam que existe por trás significados ocultos, porque se lembram, ainda que vagamente, das cobras e suas histórias de mudar o mundo trazendo o progresso.

[elza fraga]