domingo, 26 de abril de 2009

O SEGREDO DE CALAR O TEMPO

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Quando olhei o relógio, assustada com o barulho chato que ele fazia,
comentei com os meus botões o quanto eu era irresponsável com este negócio de tempo.
Não me importava se o ponteiro andava pra frente, pra trás ou pro lado. Eu nunca fazia nada mesmo na hora em que esperavam que eu fizesse... Acho que era uma maneira de castigar a vida que insistia em amanhecer, entardecer, anoitecer, metodicamente, passando pelo vidro da minha janela.
Absoluta e repetitivamente igual
Não teria porque ser diferente... A vida corre pelos dedos da gente. Se corrermos juntos ela nos pega na curva, melhor ficar aquietado, abestado num canto, ludibriando a infeliz que só quer correr porque não aprendeu a se comportar como pessoa direita, de elegância e berço.
Bem se vê que a vida não foi educada pelas mãos e falações diplomáticas de minha mãe... Ah, essa sabia direitinho o valor da quietude. Filho tinha que ser tudo besta domada. Era o dia todo de “cala a boca menino, se aquiete”! E aí daquele que não engolisse palavras, choros e lamentos rapidinho. O cascudo comia solto e era varada pra todo o lado!
Não que esta educação baseada nos mais meritórios princípios da lei do mais forte tivesse contribuído pra me fazer lerda, não... A culpa não foi da psicologia aplicada com tanto fervor em costas e pernas. Eu já nasci assim, defeituosa, com uma visão aleijada e torta de contar o tempo.
Tentei uma vez, num desespero de fingir normalidade, me fazer aliada. Comprei um relógio de pulso.
Pulava da cama as sete, engolia um café com bolachas. Almoçava meio dia em ponto. Tomava o chá das cinco com biscoitos daqueles que derretem na boca. Jantava as oito e ia dormir as dez... Pensa que consegui comovê-lo? Dominá-lo? Ledo engano!
Engordei uns trocentos quilos, e ganhei um monte de dobrinhas por baixo do queixo. Fiquei com os olhos enterrados dentro de duas bochechas redondinhas igual a um círculo.
E o infeliz continuou zombando de mim no seu claudicante tic-tac.
Aí me descobri parte deste espaço que, sadicamente, conta a vida da gente por segundos. Quando você respira o segundo já é o próximo. E o próximo. E o próximo... Eta trem danado que nem para na estação pra você conseguir dar uma respirada de três tempos!
E quando penso neste segundinho aqui escurecendo, já na retaguarda, me dá uma vontade louca de endoidar de vez e sair gritando, resgatar das mãos da minha mãe as varas do passado, correr atrás deste tempo malvado e falar pra ele, com toda a sisudez das antigas ordens maternas, com a cara fechada que só ela sabia fazer : Cala a boca menino, se aquiete!Só a minha mãe, na sua sábia mineirice, guardava o segredo de calar o tempo!

(Elza Fraga)

A MOÇA QUE ERA OUTRA

OU
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UM CONTO SURREAL
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Da série histórias adaptadas a realidade atual.
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Eu vou contar uma historinha, afinal sou uma contadora de histórias,
se, no final, vocês acharem alguma semelhança com fatos netnianos,
não se avexem, pode até ter acontecido...
Mistérios da internet e destes malucos tempos modernos.

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Um belo dia uma moça, mais pra senhora já de certa idade, que não se conformava com a passagem do tempo, tentou detê-lo.
E se esforçou, ah, isso foi mesmo, a vero. A sua batalha era diária! Cremes, todos que entrassem no mercado cosmético oferecendo pele lisinha, sem rugas, viço, aparência de bumbum de bebê. Suas prateleiras do closet, seus armários de banheiro, sua gavetas de roupa íntima, estava tudo tomado pelos potes e mais potes.
Aí os potinhos, antes milagrosos, começaram, numa rebelião silenciosa, a invadir o resto do pequeno apartamento. Fizeram um complô, um trato entre eles: Não mais iriam funcionar a partir daquela data.
Firmaram um documento, registraram em ata, deram autenticidade de Assembléia Extraordinária.

Ela começou a perceber que estava perdendo uma batalha vital pra sua vaidade indomada. Partiu para outras frentes. Fez o primeiro email, entrou no primeiro site, virou internauta. E aí se deslumbrou!
Nossa, como era fácil retroceder no tempo,
parar o relógio, manipular as horas.
Virou vício e, quando ela se deu conta, já estava fazendo parte de uns trocentos e não sei quantos espaços netnianos. Já possuia pra lá de dezenas de endereços eletrônicos. Não tinha mais tempo nem pra se olhar no espelho... E, como o que os olhos não vêem o coração não toma conhecimento, começou a acreditar na eterna juventude.

Muito antes dos aniversários passarem a adversários ela já não possuia muito glamour, mas quem queria saber disso agora?

E se reinventou no espaço virtual. Virou uma jovem, cheia de vitalidade e idéias.
Bem, não se pode negar a sua brilhante criatividade e nem deixar de dar mérito a sua inteligência. Como diz o mineiro, 'um cadinho' acima da média.

Escrevia todo o dia, o dia todo. Com as fotos de perfil retiradas de lugares distantes, o mundo que inventou pra estar dentro e as suas fantasias, conseguiu uma legião de admiradores que só fazia engrossar fileiras.
Dava corda, ia até onde o bom senso guiava, as vezes, poucas, perdia a mão, errava a massa. Mas com uma mente brilhante, conseguia contornar, reconvencer, trazer o séquito a seus pés.

Mas como a inveja é uma merda, começou a pipocar um montão de mulher mal'amada, orbitando a sua volta, esperando o momento de dar o bote.
Todos sabem que mulher é parente direta da víbora, desde o Éden.

E tanto espreitaram, confundiram, espicaçaram, vigiaram, bizoiaram que conseguiram.
Pegaram um furo que não tinha como ser consertado.

Ela, no afã de ficar melhor na fita, de desenhar um retrato cada vez mais atraente e agregador de meninos, talvez na tentativa de resgate de uma juventude remotíssima e apagada, sem grandes aventuras e emoções, sem pompa e circunstância, cometeu o primeiro grande deslize, destes sem conserto ou remédio:
Postou, como sendo seu, material alheio em espaço particular, achando, inocentemente, que a turba devoradora de fígados não iria ter acesso a lugar tão remoto da net.

Ah, mas nada escapa, tudo se destampa um dia!
E se uma menina, apenas uma, das seguidoras 'detetivas' encontrar um material tão explosivo e rico de provas, claro que ele vira de dominio público num piscar de olho.
Menos que o tempo levado pra adquirir uma nova ruguinha de expressão, um pézinho de galinha...

Dito e feito. O estrago estava consumadíssimo.
Cabisbaixa, chorosa, máscara arrancada com a brutalidade e sadismo feminino, tentou consertar o sem conserto, reverter o irreversível.

Nada feito, as seguidoras da vida alheia, se certas ou erradas, nem entro no mérito, a cercaram pelos sete lados. E acertaram o milhar!

Bem, como eu já havia escrito, ela era inteligente, mas um pouquinho ingênua.
Tomou logo suas providências derradeiras.
Num acesso de fúria quebrou todos os espelhos, não sem antes perguntar:
Espelho, espelho meu, existe alguém mais perseguida do que eu?

E partiu pro front, numa estratégia não esperada pelo inimigo.
Num gesto de desespero e extremismo suicidou o fake, mesmo sem corpo,
sem IML, sem notícia de jornal...
Os acusadores se comoveram, confundiram novela com vida, ficção com realidade, virtual com mundo.
Teve luto, teve choro, só não teve vela, porque o endereço
fakeniano, o local, talvez, da provável cremação, a cerimônia íntima, e as orações ao vivo, pro morto, não foram facultadas a nenhuma legião, nem de admiradores e nem de detratores.
Mulher então, ahh, que vá de retro, satanás!

Triste e feio assassinar um fake, mas crime, destes que dá cadeia, não é!

Mas o fecho desta história é o que mais me encafifou:
Disseram, a boca pequena, que ela já está, lépida, novamente jovem e bastante fagueira, em um outro site, o primeiro com certeza, desta próxima fase; internautando e recolhendo novos admiradores.
Mas, como os tombos servem pra ensinar a levantar e calçar os caminhos pra não retombar, mudou o personal.
Não, eu não vou contar procês se agora ela vem de bruxa, fada, pintora, contadora de histórias, dona de casa... Cada uma que descubra por si só e, se quiserem, podem me contar. Eu sou um túmulo, apesar de contadora de causos, hehehe.

Mas isso é só uma história, quem quiser que conte outra

(Elza Fraga)