sábado, 22 de maio de 2010

TARDE DEMAIS

Ela passara a vida a mudar de dono, escrava vendida por tostões de vida.
Primeiro o pai, chicote sempre a mostra e proibições a vista.
Numa infeliz e inútil tentativa de alforria veio o marido.
E o que lhe parecera cor de rosa rapidinho virou cinzas.
Só sobrou a lembrança do bolo e da festa, depois foram noites insones de medo.
Imprevisível este novo dono, ela nunca conseguira adivinhar antes
pra pular fora dos bofetes que cada vez ficavam mais frequentes e duros.
Aprendeu rapidinho a receita da liberdade:
Vidro moído na cervejinha do final de tarde, todos os dias, religiosamente.
Um dia o pobre cuspiu sangue, levaram pro hospital, mas o mal já estava feito
e sacramentado.

Ela se imaginou agora livre para todo o sempre, amém!

Mas esquecera apenas um detalhe, o canalha havia deixado um canalhinha
que ele próprio adubara nas longas tardes de ensinamento.
E o que era projeto virou homem, mais parecido com o falecente impossível.


Nunca mais que ela teve pé na estrada. Desistiu.
Só balançava a cabeça em sinal de aceitação pra este último
e derradeiro dono.
Desaprendeu o não, desaprendeu a luta, desaprendeu a luz.

Cansou de lutar contra as correntes e se deixou ali no escuro, parada,
morta em vida.

E se deu conta que aprendera tarde demais a obediência.

(Elza Fraga)

10 comentários:

  1. Quantas não passam por isso, sempre acorrentadas a um homem diferente, escravas de um sentimento, de um rancor.

    Excelente texto!

    Beijo, querida.

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  2. Oi, querida poetamiga
    Gosto por demais de falar de mulheres que se prendem, sempre por conta própria.
    Lembram-me pássaros cativos desde nascidos, desde sempre.
    Se você abre a porta da gaiola eles se encolhem lá no fundo e se deixam ficar, ali, único território que conhecem.
    Temem a liberdade, esta dona desconhecida, estranha.

    Eu ainda prefiro o meio fio, o vento na cara, o olho no céu e as andanças, mesmo que seja caro o preço a pagar.
    Liberdade sempre parece grátis, mas seu preço as vezes é suor, as vezes é sangue.

    Bitokitas, poeta Lara.

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  3. Destino ou escolha a liberdade e a escravidão são instâncias de nós. Exercê-las por direito, não é fácil mas é prazeroso, mesmo em tons de vermelho.

    Belo texto!

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  4. Caramba!

    meio ácida essa história.
    é difícil saber o que é liberdade, mas a gente sempre sabe exatamente o que não é. E o único bem que nos trás a felicidade é "preservar o pouquinho de liberdade que ainda resta" [henry miller em Sexo em Clichy]

    beijo.

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  5. Mai, minha linda,
    eu sempre vejo a liberdade como conquista.
    A gente não escolhe a prisão, nem o destino nos faz a gentileza da doação.
    Bem, pelo menos no meu caso foi luta ferrenha.
    Felizes o que o destino os presenteou,
    ou puderam escolher.
    Causo é bom por causa disso, dá caldo pro diálogo, rsrs.

    Brigadim pela visitinha, a noite vou retribuir
    e dar uma espiadela, o zóinho já tá que num guenta, rsrs.

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  6. Casa, querido,
    até seu codinome é acolhedor: casa é onde a gente se refugia do medo do escuro, da chuva e da vida, rsrs.
    Mas sabe que vc acertou um detalhe em cheio?
    Eu tô ficando ácida, por isso as histórias me seguem o rítmo, rsrs.
    Bitokitas, brigadim pela visitinha, a noite farei nova ronda e vou te visitar.
    Sucesso, querido, e luz procê.

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  7. história sem happy-end, tristemente triste. mas a realidade dói, às vezes. abraço

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  8. Muito bom, visceral.
    Abraços de arte, moça.

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  9. Como diz o Mestre Assis, a realidade dói...

    Excelente texto!

    beijokas,

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  10. Olá Elza!
    Hoje apenas e simplesmente estou dando uma olhado no seu blog que achei interessante. Na verdade eu não tenho muita intimidade com a internet, brinco com o joguinho (MF) que acho divertido e preencho um pouco meu tempo na NET, mas acho que não me acrescenta nada, ou quase nada. Logo farei comentários aqui... beijinhos!

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