quinta-feira, 10 de setembro de 2009

E O SOL NEM NASCERA

 ....
Hum hum, respondeu sem nem escutar.

Atras da mesa, jornal enfiado na cara e cara enfiada no seu próprio mundo
que este daqui não dá mais pra cristão nenhum, com o mínimo de bom sendo, aguentar de cara limpa.
E as seis da matina  quase todas as caras estão limpas.
Muito cedo pro anestésico em forma de  cachaça ou similares.

Encaraminholava estas idéias tortas enquanto o olho corria as manchetes, só desgraças!
Chuva, barraco desabando deixando criança morta e corpo não achado, ventania
destelhando cidades inteira...
Será o Benedito ou será o fim do mundo, o Apocalipse?

A mente, que nenhuma é obediente, vagava sem rumo até lembrar das pernas
de Odaléia.
Aí se perdeu nos detalhes e aquietou o pensamento só nelas.
Roliças, mesmo sem gorduras excessivas eram um desparrame de carnes
que sabia, por instinto, cheirosas.
Quiça um dia perder a cabeça e a lingua entre aquelas coxas, e nunca mais achar o caminho de volta.
Que voltar pra esta casa, pra esta mesma mulher de quinze anos atras, em versão piorada, tirava a sanidade e o tesão de viver.
Mas Odaléia não. 
Era a novidade, o susto de ser pego com o olho gordo em cima das curvas perigosas.
Esta era carne fresca, exibidamente despudorada com todos na repartição, menos com ele.
E por causa desta indiferença  se sentia menor, menos homem, incapaz de um ato de coragem.
E mais raiva sentia da esquisita sentada a sua frente, que insistia em lhe dirigir a palavra e tinha urgência de respostas, respostas que ele não queria dar, não podia dar, não as tinha.

Vontade de abrir a porta do quarto, pegar uns poucos panos de bunda, e sair assobiando, passarinho solto, sem casa, sem pouso, sem culpa, sem responsabilidade em sustentar aquela vaca usurpadora de espaços indevidos.
Talvez aí Odaléia o olhasse com um misto de ternura e piedade, não era bem o que ele queria, mas já era um começo, uma luzinha acesa no final do túnel.

E o tempo lá fora correndo que nem cavalo solto, indomado, em campina aberta.
E ele aqui preso, pássaro cativo desta vida de merda, gaiola que construiu com a própria mão e esforço!
Só ele poderia desconstruir.

A mulher, muda agora, espionando cada piscadela sua, cada mudança de fisionomia, cada meio sorriso ou cada ricto de amargor, pelas beiradas que o jornal deixava sem cobertura.
Ele sabia que ela sabia que ele nem pensava ou se preocupava com ela e sua vidinha de lavar, passar, cozinhar, cuidar de cachorro e fofocar com a vizinhança do quanto ele era estranho.
E pensar em mais esta lhe doeu uma raiva vinda do fundo do estômago,
os intestinos se entortaram numa revolução besta, subiu a boca aquele gosto de fel
que o apavorava e dava medo. Virava outro nestas horas.

Pegou a talha de queijo, a faca afiada, levantou num movimento rápido e insuspeitado e cravou, fundo, naquele coração sentado na cadeira em frente.
Foi só um grito de susto, um ai, meio que de queixa, de mágoa, de tristeza do que poderia ser e nunca foi.
Uma lamúria vazia contra o nada que tinha sido toda uma vida.
Mal sabia que ia criar fama, fazer carreira nos noticiários logo, logo.
Assim que uma das vizinhas tivesse carência de alguém pra contar a última fofoca.
E ele já saboreava o prazer de ter fornecido a fofoca inesperada.

Limpou a faca na toalha da mesa, pulou por cima do empecilho caido ao chão, sem nem um olhar de curiosidade, remorso ou respeito.
Abriu a porta pra rua

Enfim a liberdade!

4 comentários:

  1. Oi Elza,

    Pois é...
    Visitei os seus espaços todos e vejo que descubro uma poeta feminina impressionante e uma cronista que retrata com perfeição a crueldade de nosso cotidiano.

    Fiquei encantado.
    Parabéns.
    bjos.w

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  2. Oi, Oswaldo
    Brigadim pela visita e comentário.
    Estou vindo agorinha lá do seu blog,
    não fui antes porque o Vélox me derrubou e me deixou a ver navios a tarde inteira, rsrs.
    Amei seu blog e comentei, e volto com certeza!

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  3. Uau, coisa incrível este conto! Mais me pareceu um devaneio daqueles que a gente tem vontade de fazer, imagina a cena, mas só quem faz mesmo é o eu-lírico. Loucuras à parte, Odaléia devia valer à pena.

    Adorei!

    Beijo.

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  4. Oi, Lara, eu também espero que Odaléia tenha valido a pena, ou no mínimo compreendido o infeliz, rsrs
    Bitokitas!

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